Novos caminhos: o drama de adolescentes abrigados que sonham com um futuro melhor



Projeto desenvolvido em parceria entre AMC, Fiesc e TJ/SC promete estudo e trabalho a jovens que deixarão casas de acolhimento em Santa Catarina.

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Henrique* e José*, dois adolescentes, duas histórias distintas e um mesmo destino: a Casa Lar Pai Herói, localizada no bairro Real Parque, em São José. As semelhanças não param por aí. Com o mesmo olhar sofrido, os dois lutam por uma vida diferente da que os trouxe a morar longe da família. E a luta não é fácil. Na casa onde moram, tudo é um pouco improvisado, assim como foi por muito tempo a vida deles. A pequena sala abriga sofás rasgados e uma mesa com bancos de madeira. A cozinha é pequena e os quartos apertados.

Nada disso, porém, é capaz de minar os sonhos desses jovens. Eles decidiram que não queriam ser vistos com olhar de pena e correram atrás de uma vida melhor longe dos muros do abrigo. Há quase um ano, trabalham no setor administrativo de uma empresa fornecedora de máquinas e equipamento para construção civil, por meio do Programa Jovem Aprendiz, e fazem planos para o futuro. A rotina é puxada. Henrique*, 15 anos, dá expediente no trabalho, pela manhã onde, como ele mesmo conta, “já aprendi tanta coisa que nem consigo listar” e no período da tarde vai à escola, onde cursa o 8º ano. “Meu vocabulário mudou bastante. Gosto de ler os arquivos que tenho que organizar e aprender palavras novas”, fala. Na Casa Lar Pai Herói mora também com o irmão, de 14 anos, e com mais outros seis jovens com idade entre 13 e 17 anos.

Mas até chegar à casa de acolhimento, há pouco mais de dois anos, enfrentou uma vida de dor e sofrimento, cujas marcas carrega até hoje. Com apenas quatro anos, viu seu pai descarregar uma arma pelas ruas da favela onde morava. O motivo? Havia descoberto que sua esposa estava se prostituindo e havia sido abusada. Em poucos minutos, a polícia estava na pequena casa da família, onde viu sua mãe atingir um policial com um machado. “Lembro que tinha muito sangue. Depois eles bateram muito no meu pai, prenderam ele e minha mãe e bateram na gente também. Só lembro de acordar na delegacia”, relembra. Morou um tempo com a avó, até seus pais ganharem a liberdade. Com a separação deles, foi morar com a mãe e o padrasto. Neste período, era obrigado a comprar drogas para a mãe, que chegou a dar o filho para servir o tráfico em troca de mais drogas, e passou a ser agredido pelo padrasto. “Consegui fugir e fui morar com a minha avó”, lembra o jovem. No novo endereço, era proibido de estudar e sair de casa. Foi quando resolveu ir morar no abrigo. “Gosto muito de estudar e quero fazer faculdade. Quero uma vida diferente para o meu futuro da que tive. Jamais faria com os meus filhos nada do que passei”, diz.

A história de Henrique se repete nas palavras do amigo e colega José, 16 anos, que mora na Casa Lar há quatro. O olhar do jovem sorridente muda quando lembra o motivo que o trouxe a morar longe dos familiares. Junto com a irmã, que completou 18 anos no ano passado e teve que enfrentar o mundo sozinha, tenta refazer a vida e encontrar nos colegas, com quem divide as responsabilidades de manter a casa organizada, uma nova família. Com 10 anos, seu pai assassinou a sua mãe e foi preso. Chegou a morar com os tios e padrinhos, mas preferiu vir para o abrigo, talvez para apagar as lembranças, que não gosta de recordar. Daqui a dois anos, quando terá que deixar o abrigo, pretende morar com a irmã e seguir carreira na Aeronáutica.

Henrique, apesar de já estar no mercado de trabalho e dos planos traçados, ainda tem medo do que será da sua vida daqui três anos, quando terá que sair da Casa Lar e enfrentar o mundo sozinho. “Eu não tenho uma família para me ajudar, nunca tive. Eu fico pensando, o que vai acontecer quando eu tiver 18 anos?”. A resposta para a pergunta, que se multiplica na boca dos 440 adolescentes entre 14 e 18 anos, que integram Programas de Acolhimento em todo o Estado, pode vir por meio da parceria entre a Associação dos Magistrados Catarinenses (AMC), Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (Fiesc) e Poder Judiciário, por meio da Coordenadoria Estadual da Infância e Juventude (Ceij). O Termo de Cooperação, que marca o início das atividades do projeto Novos Caminhos na região oeste do Estado, foi assinado nesta sexta-feira, 30 de agosto, em Chapecó. O objetivo é capacitar profissionalmente os jovens que, ao completar 18 anos, deixam os abrigos sem nenhuma perspectiva, e inseri-los no mercado de trabalho. No primeiro momento, o projeto vai atender 29 jovens da região Oeste e, futuramente, 472 em todo o Estado. A próxima cidade a receber a iniciativa será Joinville, na região Norte.

Os jovens serão capacitados profissionalmente pelo Instituto Euvaldo Lodi (IEL), ligado ao Sistema Fiesc, de acordo com as suas afinidades ou aptidões. Em seguida, serão encaminhados para ocupar vagas de trabalho nos mais diversos ramos da indústria e, por último, uma avaliação ajudará ainda aqueles que precisam receber algum tipo de complemento na escolaridade. “Vamos lançar o projeto piloto e validar a metodologia. Mas, o objetivo é levá-lo para toda Santa Catarina”, explicou a coordenadora da área de estágio do Instituto, Bianca Pauletti.

De acordo com o Desembargador Sérgio Izidoro Heil, responsável pela Coordenadoria da Infância e Juventude (CEPIJ), a ideia é começar as atividades de inclusão no mercado com jovens, antes mesmo de completar os 18 anos, na faixa dos 15 anos. “Essa é uma ótima iniciativa. A Fiesc tem sido uma grande parceria, através do Sesi e Senai, nessa parceria”, diz. Ainda de acordo com Heil, não há assistência do Estado – existem alguns projetos, mas são raros. “Há casos de abrigos que permitem ao jovem ficar por mais tempo no local, até se encaminhar, mas também são poucos”, diz. Segundo a juíza Ana Cristina Borba Alves, atualmente, são justamente as casas de acolhimento que acabam cumprindo o papel de encaminhar esses jovens para o mercado de trabalho. “Há locais que acabam se antecipando e tem projetos próprios para ensinar a esses jovens uma profissão ou encontrar um emprego”, salienta.

Segundo a Juíza Brigitte Remor de Souza May, da Vara da Infância e da Juventude da Comarca da Capital, em Florianópolis não existe uma política centralizada, mas as casas de acolhimento – respeitada a faixa etária – providenciam o encaminhamento, além da escola, para cursos profissionalizantes ou programas como o Jovem Aprendiz, através do trabalho em rede. “Esta parceria com a Fiesc é fundamental, pois cria oportunidades para os adolescentes acolhidos, contribui para sua formação e estimula o exercício da autonomia”, pontua.

Santa Catarina tem 170 Programas de Acolhimento que atendem crianças entre zero a 18 anos, totalizando 1,5 mil crianças e adolescentes. Segundo Mery-Ann das Graças Furtado e Silva, integrante da Comissão Estadual Judiciária de Adoção (CEJA), muitos destes jovens têm dificuldade de se inserirem no mercado de trabalho pela baixa escolaridade. “São adolescentes que vem de lares desestruturados, que muitas vezes nem frequentavam a escola”, explica. Além disso, nem sempre os jovens que conseguem um emprego são bem aproveitados na empresa. “Há casos das assistentes sociais encontrarem os jovens limpando o chão e fazendo serviços gerais, quando o contrato prevê uma função administrativa. Para eles, é necessário que o trabalho seja também um local de aprendizado”, afirma.

Para Mery-Ann, este novo projeto é primordial para o início da vida adulta destes jovens, dando-lhes suporte para começar a vida sozinhos. “Não vai ser apenas um emprego, pois a proposta é que a empresa apadrinhe esses jovens, capacitando-lhes, dando-lhes perspectiva de futuro e um atendimento individualizado”, ressalta.

Para o presidente da Associação dos Magistrados Catarinenses (AMC), Sérgio Luiz Junkes, o projeto é um apoio importante e uma grande oportunidade para que eles consigam enxergar e traçar um futuro diferente do passado que tiveram. “É de suma importância para resgatar a autoconfiança e autoestima destes jovens, dando-lhes uma oportunidade que nunca tiveram: de construir uma carreira profissional, tornarem-se independentes e poderem manter-se sozinhos. Sabemos do trabalho árduo de muitos juízes da Vara da Infância e Juventude quando se deparam com histórias de vida como essa. A concretização deste projeto é uma satisfação a mais para continuar lutando por uma história feliz para estes meninos e meninas”, fala.

* Nomes fictícios para preservar a identidade dos adolescentes

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